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S013t Santos. Trolosa, notas sobre Infiel, de Liv Ullman
index do verbete
1. Introdução: o que é cinema de arte?
a Para que serve esta reunião?
Um filme pode ser analisado e discutido em vários níveis: há o aspecto estético-artístico, o aspecto simbólico (meu preferido), e os aspectos morais, filosóficos, psicológicos, políticos.
Filmes sobre relacionamentos, adultério e dramas familiares há muitos, mas filmes, com essa ou outra temática, que tenham valor artístico, são sempre raros. De forma que me atrai mais a ideia de discutir os aspectos artísticos da obra. Os aspectos relacionados com o tema do filme, a fábula, são sempre acessíveis a todo espectador, porque para o espectador comum interessa somente essa primeira camada, mais superficial, da obra. Parece-me que um projeto como o Cinuem pode servir, além de outras finalidades, para formar um público qualificado para usufruir da arte cinematográfica, isto é, um público mais capacitado para ver e compreender a arte que pode estar contida num filme. Assim como quem entende de futebol, ou de vôlei, obtém muito maior prazer assistindo uma partida, quem estuda e se aprofunda em qualquer forma de arte, conhecendo sua linguagem, fica mais capacitado para frui-la, dela extraindo mais prazer e significado.
b O que é Arte?
Daí cabe perguntar: o que é arte, e o que vem a ser um filme “de arte”. Arte, segundo Houaiss, é “produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana”. “O artista é o criador de coisas belas”, como disse O. Wilde (n’O retrato de Dorian Gray).
Mas o conceito é controvertidíssimo. Preferimos, dentre os vários modos de ver a questão, dizer que a arte é “instrumento de prazer cultural de riqueza inesgotável. A razão está presente, mas a obra enfeixa elementos que escapam ao domínio racional, e se comunica conosco por outros canais: da emoção, do espanto, da intuição, das associações, das evocações, das seduções. Descrever, analisar, comparar uma obra é indicar modos de aproximação, mas não esgotá-la. Os sentidos da obra escapam ao discurso porque jamais deixarão de pertencer ao campo do não-racional” (Colli, 1981).
A obra de arte tem o sentido o que o espectador quiser, ou puder, dar. Conforme Alain Robbe-Grillet, a única personagem importante é o espectador, pois é na cabeça deste que se desenvolve toda a ação que é, precisamente, imaginada por ele (apud Setaro, 2013). O cinema (como os demais suportes artísticos) é uma “máquina de projeção-identificação”. O espectador é passivo e ao mesmo tempo ativo. Pode, de certa forma, participar: tem autonomia na história tanto quanto o autor, porque, na verdade, a interpretação da obra depende do espectador. Um filme só fica pronto depois de ser visto pelo público” (Langie, 2007). Conforme Bundt (2007, p.3), o espectador de cinema é tanto paciente quanto agente do que está exposto na tela. “Os acontecimentos do filme, como num sonho, capturam o espectador, colocando-o no centro de um processo de significação, onde filme e espectador interagem conectando sentidos pré-construídos dos dois lados”.
Dessa forma, o espectador é quem diz o que a obra significa: há um diálogo entre a obra e os conteúdos culturais e emocionais do usufruidor. Quanto maior é o acervo cultural do espectador, e maior sua conexão com os próprios sentimentos, mais ele está apto a apreciar a obra de arte. De forma que “gostar ou não gostar não significa possuir uma sensibilidade inata ou ser capaz de uma fruição espontânea. Significa uma reação do complexo de elementos culturais que estão dentro de nós diante do complexo cultural que está fora de nós, isto é, a obra de arte” (Colli, 1981).
Por isso é que sobre o rosto de M., B. diz que “Serve tanto para o drama quanto para a comédia”. O mesmo se pode dizer do filme que ele cria: serve para rir ou chorar, dependendo dos complexos culturais e emocionais de quem assiste.
c E para que serve a Arte?
Mas o prazer cultural, estético, não é o único objetivo da arte, e de quem a frui. E nisso está a diferença entre arte e puro entretenimento, obra de arte e produto industrial: a arte, além da beleza, tem a oferecer uma mensagem dirigida ao inconsciente, capaz de atingir conteúdos emocionais do usufruidor.
“Buscamos a arte pelo prazer que ela nos causa. Uma sinfonia, um quadro, um romance são refúgios, pois instauram um universo para o qual nos podemos bandear, fugindo das asperezas de nossa vida ‘real’, procurando as delícias das emoções ‘não reais’. No fundo, são os mesmos motivos que nos fazem assistir a um jogo de futebol. A diferença é o corolário que enunciamos acima: as emoções artísticas são ricas e fecundas, o prazer e a evasão não são só ‘alienações’ num primeiro momento: transformando nossa sensibilidade, elas transformam também nossa relação com o mundo” (Colli, 1981).
Assim, pode-se dizer que a arte existe, e nós dela necessitamos, porque o objeto artístico nos permite entrar em contato com camadas do nosso próprio inconsciente, e, assim, com o prazer ou desprazer da fruição da arte, nos conheceremos melhor. Por isso se disse:
Por vezes pelas tardes há um rosto / Que nos olha do fundo de um espelho / E a arte deve ser como esse espelho / Que nos revela o nosso próprio rosto (Jorge Luis Borges, Arte Poética).
Todas as artes são como espelhos nos quais o homem conhece e reconhece algo de si que ignorava (Alain, “Vinte lições sobre as belas-artes”).
O que a arte realmente espelha é o espectador, não a vida (O. Wilde, O retrato de Dorian Gray).
E isso é também lembrado por Campbell (1990):
“O reino humano abarca, por baixo do solo da pequena habitação, comparativamente corriqueira, que denominamos consciência, insuspeitadas cavernas de Aladim. Nelas há não apenas um tesouro, mas também perigosos gênios: as forças psicológicas inconvenientes ou objeto de nossa resistência, que não pensamos em integrar – ou não nos atrevemos a fazê-lo – à nossa vida. E essas forças podem permanecer insuspeitadas ou, por outro lado, alguma palavra casual, o odor de uma paisagem, o sabor de uma xícara de chá ou algo que vemos de relance pode tocar uma mola mágica, e eis que perigosos mensageiros começam a aparecer no cérebro. Esses mensageiros são perigosos porque ameaçam as bases seguras sobre as quais construímos nosso próprio ser ou família. Mas eles são, da mesma forma, diabolicamente fascinantes, pois trazem consigo chaves que abrem portas para todo o domínio da aventura, a um só tempo desejada e temida, da descoberta do eu. Destruição do mundo que construímos e no qual vivemos, assim como nossa própria destruição dentro dele; mas, em seguida, uma maravilhosa reconstrução, de uma vida mais segura, límpida, ampla e completamente humana – eis o encanto, a promessa e o terror desses perturbadores visitantes noturnos, vindos do reino mitológico que carregamos dentro de nós”.
Isso vale principalmente para cinema, porque, como diz Peters (1964):
O cinema oferece, ao contrário da literatura e do teatro, a possibilidade de entrar no mundo virtual representado. Permite uma vida dupla ao espectador, uma participação virtual na vida de outro. Isso permite, mais que nas outras mídias, a projeção das tendências, sentimentos e caráter do espectador no personagem, e a identificação daquele com este.
Com efeito, a atitude instintiva mais comum, e às vezes inconsciente, do espectador, é “escolher” um personagem para se identificar, para “torcer” por ele, para representá-lo na tela.
A arte nasceu com finalidades mágicas, evoluiu na forma de rito religioso, com fins iniciáticos: encenar e repetir os mistérios sagrados. Fornecia ao homem o conhecimento dos grandes mistérios da vida. Mas na nossa cultura a iniciação se dá por transferência de emoções, através da literatura. O teatro nasceu no momento em que os ritos iniciáticos deixaram de ser espontâneos e passaram a ser encenados, apresentados a um público passivo, que se envolve na cena de outra forma: pelo envolvimento emocional (catarse), pela identificação profunda com o destino do herói. O herói contemporâneo é o herói literário, e o destino do herói é a sua iniciação: a descoberta de si mesmo. O herói continua visitando os infernos, mas principalmente passeia sobre sua própria alma (Feijó, 1984). Pode-se dizer, então, que
“[...] nos emocionamos ‘por procuração’. Sofremos com as desventuras das personagens, exultamos com sua felicidade. Não comprometemos nossos sentimentos ou vidas: penetramos numa espécie de análogo da relação amorosa. E, é bem verdade, se o fazemos é de alma limpa: vivemos com as nossas paixões as paixões de outrem, sem os compromissos e as exigências do ‘real’” (Colli, 1981, p.78).
A ideia não é nova, vem de Aristóteles, que afirmou que o propósito da obra de arte (referia-se ele especificamente ao teatro) é produzir a catarse: a purificação das almas por meio da descarga emocional provocada por um drama. Para suscitar a catarse era preciso que o herói passasse da dita para a desdita, ou seja, da graça para a desgraça, não por acaso, e sim por uma desmedida, ou seja, por uma ação ou escolha mal feita:
“nas peripécias e nas ações simples, os poetas alcançam maravilhosamente o fim que se propõe alcançar, a saber, a emoção trágica e os sentimentos de humanidade” (Aristóteles, op. cit.).
d A arte existe por causa da morte?
A arte é também um esforço da imaginação para vencer, ou atenuar o peso da, finitude humana. Conforme Durand, a imaginação é uma forma de compensação para a finitude da vida.
“A imaginação simbólica é dinamicamente negação vital, negação do nada da morte e do tempo (...) uma ‘reação defensiva da natureza contra a representação da inevitabilidade da morte, através da inteligência’. (...) a função de imaginação é, acima de tudo, uma função de ‘eufemização’ [...] toda a arte, da máscara sagrada à ópera-cómica, é sobretudo iniciativa eufêmica que se insurge contra o apodrecimento da morte” (apud Cavalcanti, 2010).
No mesmo sentido:
“A arte é concebida como uma luta contra a morte, bem como, aliás, a mística. Uma e outra simbolizam um combate pela eternidade” (Chevalier & Gheerbrant, 2008, p.876).
Eça de Queiroz escreveu:
A arte oferece-nos a única possibilidade de realizar o mais legítimo desejo da vida – que é não ser apagada de todo pela morte.
Por isso é que, quando M. pergunta o que estão fazendo ali, B. responde:
“Uma distração antes da morte. No crepúsculo que nos resta coisas acontecem, por causa do tempo implacavelmente condensado”
e E o que é “filme de arte”?
Por fim o que diferencia um filme de arte de um filme de indústria é a autoria, que permite a caracterização da obra como uma criação pessoal, um manuseio todo pessoal dos elementos da linguagem cinematográfica, que traz para a tela a marca do estilo do realizador. Como ensina André Setaro, o filme tem um elo semântico (o enredo, a história que conta, a fábula, o “conteúdo”) em conjunção com um elo sintático (a linguagem cinematográfica com seus muitos recursos, a narrativa, a “forma”). Nos filmes dos grandes autores, a narrativa tem preponderância sobre a fábula: a coisa mais importante não é a história mas o discurso, ou seja, o “como” e não o “que” da narrativa. O plano onde se pode procurar a eventual poeticidade do filme não é o plano da fábula (o enredo), mas sim o plano da narrativa (a linguagem). E arremata:
“em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo-se por forma (...) o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico. O que significa dizer: tanto no cinema como no romance, é o discurso que escolhe a fábula que lhe parece mais funcional” (Setaro, 2013).
2. Aspectos estéticos.
f Comparação com Anna Karenina
Anna Karenina (dir. Joe Wright, 2012) trata da mesma temática (adultério resultando em destruição familiar e pessoal, ciúme e ódio), também tem suicídio no final, também tem uma mulher como infiel. Mas é americano em tudo: colorido, vibrante, emocional, estilizado, plasticamente belo.
g O estilo de Ullman
A diretora escolheu para o filme uma paleta de cores neutras, frias (branco, bege, cinza, marrom), foscas, apagadas, sem contraste; o ambiente é ordenado, limpo, sóbrio; há frieza no cenário e no vestuário. O vermelho da paixão só aparece em Paris (na verdade há um fundo vermelho no teatro, no ensaio de Markus). Contraste sub-reptício entre as imagens e os sentimentos dos personagens. Cria sensação de estranheza.
Não há quase sexo, e quando aparece é feio, desajeitado, ou violento (‘estranho e nada romântico, desajeitado e violento’, como diz M. em 1h09m15s). Não há glamurização nem estilização do romance, do sexo, das reações diante do flagrante. É um filme sobre adultério mas não tem paixão, nem beijos, nem sedução. Não há trilha sonora a propiciar transporte musical, quase toda a música é diegésica e não visa indicar ao espectador qual a emoção esperada dele. Os atores têm boa aparência, mas não são lindos, como o padrão da indústria do cinema americano prefere. Cenário, figurino, elenco, direção, tudo é simples e sem pompa, sem exagero. Há um tratamento espartano, despojado, dos elementos da linguagem cinematográfica, gerando um filme austero, outonal, contido, sóbrio. Talvez para mostrar ao espectador que o filme trata de pessoas comuns, porque “os dramas mais impressionantes, e os mais excêntricos, não são desempenhados no teatro, mas no coração dos homens comuns, pelos quais passamos sem prestar atenção e que, no máximo, mostram ao mundo, através de um colapso nervoso, as batalhas que se desferem em seu íntimo” (Jung, 1991, p.122).
Há um foco constante nos personagens, muito destacados, mostrados quase sempre em close-up ou plano de detalhe, valorizando a interpretação, especialmente a reação: em muitas cenas, enquanto alguém narra, a câmera mostra apenas o interlocutor, o ouvinte ou reagente. Por outro lado o filme é quase todo construído na rememoração e narração verbal dos fatos. Na cena em que M. noticia a Isabelle o divórcio (01h25m), como em outras passagens dramáticas do filme, a diretora não mostra o que aconteceu: mostra M. contando o que aconteceu. O mesmo acontece na cena do estupro, que não é visto, mas contado. A violência psicológica perpetrada por D. contra M., na sequência e por vingança, também não é vista, é contada por ele. Também o pacto de morte, o suicídio, a última conversa de Mk. com Isabelle, são só referidos. Um filme americano mostraria as imagens impactantes dessas tragédias, mas este não mostra, só relata. A violência é verbal: é narrativa da violência.
Porque isso? Porque temos de saber dos fatos dolorosos por mediador, por via indireta, e com ênfase nas reações e não nas ações? Há, aqui, uma metáfora do cinema, que é um intermediário a nos trazer notícias que ele, cinema, só pode representar: por mais realista que seja, cinema não é realidade, é encenação, não é verdade, é versão. Assim como a narrativa de M., de Margarita, de David, de Mk., é versão do que aconteceu. O cinema não tem como nos mostrar, efetivamente, a realidade; por isso, Ullman não tenta, mostra uma versão da versão.
Já a ênfase no ouvinte indica uma preocupação de enfatizar os reflexos emocionais das ações narradas. Como para lembrar que as ações produzem consequências, por vezes dolorosas, nas pessoas afetadas; ou para dizer que também o espectador deve focalizar mais atentamente suas próprias reações emocionais à mensagem do filme.
h Bergman
Um escritor (ou diretor) imagina a personagem contando sua história. Evidências disso: “brincar de fantasiar”, “precisa de um nome. Marianne serve”, “Então agora eu existo? Pensando bem, é um pouco estranho. Horas atrás, você não existia. E agora você é real”. “Você está chorando? Talvez você esteja chorando”. “Nunca vê ninguém aqui, não é?”. M. aparece magicamente na janela E M. diz: ‘não gosto do meu papel’, ‘não estou contente com a sua M.’, e ao final B. diz a ela ‘M. afogou-se’, e ela responde: ‘Sim, ela morreu’.
Há um projetor de cinema atrás dele: para mostrar que ele é um personagem também? O escritor se chama Bergman, para ser um alter-ego do seu autor.
Há emoções inexplicadas na face de Bergman. Fica angustiado quando ela descreve Isabelle (“Talvez você esteja chorando”). Corta abruptamente, com uma negativa estranhamente seca, quando ela pergunta se ele conheceu Markus. Não consegue esconder a emoção quando ela relatar o encontro final com Mk (1h50m23s.). Tem de consolar D. ao final, chora e grita, mas é um grito mudo (2h06m.).
“A realização de uma obra de arte depende das mesmas condições psicológicas de uma neurose”, porque neurótico ou normal todo homem é influenciado pelas mesmas coisas, a relação com os pais, a repressão sexual, etc. (Jung, 1991, p.56).
i Marianne
Mariana, hebraico: mar de amargura, desejosa por um filho (de Mariam). Maria, hebraico, significa senhora soberana. Ana hebraico, cheia de graça, a benéfica. Marcos, latim, significa protegido por marte, o deus da guerra. Davi, hebraico, significa predileto, amado.
Impressionou-me a aparente gratuidade da iniciativa adulterina. Não parece, em momento nenhum, que M. esteja apaixonada por D., ou que o ame. Também não parece, no começo ao menos, que tenha pena dele. Parece só um capricho, uma leviandade. Ela diz: “O caso com David foi inesperado. Não posso citar um motivo. Que loucura me possuiu? Eu só pensava numa coisa: Precisava levar David a Paris”. Ela toma a iniciativa depois que ele faz uma patética lista dos seus defeitos, e apresenta o projeto como algo casual, sem compromisso, sem arrebatamento. “Vamos ser objetivos. É divertido. É simples. (...) A vida não precisa ser uma série de desastres. Existe afeição e carinho... e muitas outras coisas agradáveis”.
“Dizer ‘desejo’ talvez seja demais. É como num shopping: os consumidores hoje não compram para satisfazer um desejo, como observou Harvie Ferguson – compram por impulso. Semear, cultivar e alimentar o desejo leva tempo (um tempo insuportavelmente prolongado para os padrões de uma cultura que tem pavor em postergar, preferindo a ´satisfação instantânea’) (...) Guiada pelo impulso (‘seus olhos se cruzam na sala lotada’), a parceria sexual segue o padrão do shopping e não exige mais do que as habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez, ‘sem preconceito’. É, antes de mais nada, eminentemente descartável” (Bauman, apud Nunes, 2006).
“Eu tinha dois homens. Foi mais fácil do que pensei. Se tivesse menos ansiedades morais, teria sido excelente”, diz M..
“Suponho que a avó do diabo entenda muito da verdadeira psicologia da mulher, eu, no entanto, até agora, não” (Jung, 1991, p.118).
Morreu afogada, ou seja, imersa na água, que é meio de purificação, centro de regenerescência, simbologia ligada à mãe; nos mitos dos heróis está sempre associada ao seu nascimento ou renascimento; sempre nos reporta à origem, e nela entrar tem analogia com o ato de mergulhar no inconsciente, enquanto que ser lançado à água é similar a ser entregue ao seu próprio destino; “a imersão nas águas significa o retorno ao pré-formal, com seu duplo sentido de morte e dissolução, mas também de renascimento e nova circulação, pois a imersão multiplica o potencial da vida” (Cirlot, 1984). Como o simbolismo da água é tradicionalmente ligado ao feminino e à sabedoria, morrer afogada indica voltar à origem, purificada, imersa na sabedoria e no elemento feminino.
A água é um símbolo do útero e a operação alquímica da Solutio, um retorno ao útero para fins de renascimento. Ela representa o retorno da prima-matéria indiferenciada ao seu estado original, um confronto entre o ego e o inconsciente; uma experiência de rompimento dos limites, uma rendição, quando nosso sentido de limites começa a dissolver-se. O amor e a luxúria muitas vezes são os agentes da Solutio. Há uma rendição e uma submissão com a consequente perda da identidade na do objeto amado, fundindo-nos com o outro. É comum durante a solutio, que se experimente sentimentos de passividade e fatalismo. Uma das imagens alquímicas mais usadas para simbolizar a operação da Solutio é a do afogamento. A prima-matéria é afogada e posteriormente regenerada para que possa renascer. A banheira é representativa do alambique ou útero, o recipiente onde se processa a solutio; nela se está à mercê da água, o elemento primordial, o inconsciente coletivo.
Curioso que as massas de água estão sempre presentes na história de M., porque foi num lago que ela “se casou” com David, e foi num lago que foi estuprada por D., e foi diante do mar que narrou sua história a B. e a nós.
j Markus
A primeira coisa que vemos de Markus são as mãos. A última também (não é bem verdade).
Pouco se sabe sobre o relacionamento entre Mk. e M.. Mas ele revela não ter ciúme, quando ela diz que irá a Paris com D.. Logo depois de consumado o adultério Mk. liga “da Filadélfia”, que significa literalmente “amor fraterno”. “Quando não há nenhum sinal de ciúme, deve-se ficar igualmente em alerta, e examinar se a relação não está se desgastando, e, portanto, tornando-se desprovida de amor, o que pode transformar este relacionamento amoroso em uma relação com características fraternas” (Almeida et. al., 2008).
Convidar Isabelle para um pacto de morte, prevendo que ela não o cumpriria, não é uma maneira de fazê-la se sentir culpada pela morte do pai?
Veneno?
k As peças
Notar a importância das peças no contexto. Quando o caso começa, M. está encerrando a apresentação de “A noiva”, onde faz o papel principal. Simbolicamente, o caso com D. começa quando ela parou de fazer o papel (fingir, representar) de noiva de Mk.. A peça chamava-se na verdade “A noiva sem dote” (de Ostrowski, que Bergman dirigiu em 1956), expressão de duplo sentido que pode indicar uma noiva sem dotes, dons, talento.
No meio do filme, prestes a iniciar-se a katabasis dos personagens, D. tenta dirigir ‘A dream play’, uma peça que representa um sonho onde uma deusa baixa à terra para viver e conhecer as emoções humanas, e conclui que os humanos são dignos de piedade. D. não consegue ‘dirigir o sonho’, e diz que esse seu sonho é uma catástrofe.
Quase no fim (2h10m50s.) M. representa Agave no coro das Bacantes de Eurípedes. Na peça Agave, no êxtase báquico, mata o próprio filho achando que era um leão. Dioniso enlouquecera as mulheres tebanas por vingança, porque a cidade recusava cultuá-lo. Curiosamente Agave, palavra latina, é nome de uma árvore, também chamada aloé ou babosa, que dá um óleo aromático mas amargo, tidos por símbolos da penitência e da abstinência; a árvore, porque mencionada pela Bíblia no sepultamento de Cristo, é considerada símbolo da morte dele. E porque a árvore, uma vez só na sua vida, gera um ramo florido, que murcha em seguida, é tratata como símbolo da maternidade da Virgem Maria (Cirlot, 1984).
l O ‘sentido’
Atentar, sempre, para o título de uma obra. Infiel é adjetivo que tem como sujeito M.? Ou Mk.? Ou D.? Ou B.? Ou é a própria obra que é infiel? Será que o título não alerta para desconfiarmos dos narradores e da veracidade do que contam? Houaiss: “que não é conforme à verdade; inexato, inverídico”; “aquele que não professa a religião considerada como a verdadeira”. Etimologicamente, a palavra infidelidade remete à quebra da verdade (Almeida, 2007).
Infidelidades. D. trai o melhor amigo, M. trai o marido, depois trai o amante. Todos traem Isabelle. Mk. traía a esposa. D. acaba traindo M.. M. fica irada porque Mk. mentiu para ela fingindo ignorar a traição, fazendo cópia da chave às escondidas, mentiu que tinha ensaio, traiu o acordo de custódia obtido a preço tão alto. E Isabelle não traiu também, deixando de contar sobre Margarida a M, deixando de falar do pacto de morte, e descumprindo esse pacto? “No adultério há pelo menos três pessoas que se enganam.” (Carlos Drummond de Andrade)
Julgar ou entender os personagens?
3. Cenas destacadas
m A viagem, a boda, a volta
Da Suécia para Paris é sair de casa e viajar para o sul. “Quando escritores enviam personagens para o Sul, é para que percam a cabeça” (Foster, Para ler literatura, p.164). A geografia é metáfora da psique, e “quando os personagens vão para o sul, estão de fato cavando fundo no subconsciente” (Foster, ibidem).
A dificuldade para voltar à vida real: o aeroporto está fechado. O sonho profético de Isabelle: era verão mas fazia muito frio; verão lá fora, mas nevava dentro da sala; uma mulher, com o casado da minha mãe, estava comendo as crianças e não havia como escapar.
No reencontro triste em Copenhague o quarto é azul claro (frio) e marrom (cor da terra, lembra a folha morta, o outono, a tristeza, é uma degradação, uma espécie de casamento rebaixador das cores puras, símbolo da humildade e da pobreza; na Irlanda equivale ao negro e evoca seu simbolismo infernal; relaciona-se com os excrementos; Freud vinculava-a ao complexo anal).
n 40m20s., as “núpcias no lago”.
Viajam para baixo da tela (rumo ao sul), de barco (“simbolizando o transporte da alma e realmente por vezes tem o simbolismo de carregador de almas, um rito de passagem para o outro mundo”), sobre a água (“ponto de partida para o surgimento da vida; nos mitos dos heróis ela está sempre associada ao seu nascimento ou renascimento; um dos símbolos do inconsciente; enquanto um dos quatro elementos, é um símbolo do sentimento; as emoções também se encontram representadas na água”) de um lago (paraíso ilusório, criação da imaginação exaltada, que atrai para a morte), no alto da torre (uma representação do falo da terra, assim como a árvore, a pedra e a muralha; evoca Babel, a porta do céu, que visava restabelecer o eixo primordial rompido e elevar-se a deus, canalizar para a terra as energias do céu no tarot: rompimento das formas aprisionadoras, liberação para um novo início, momento de transição, destruição da rigidez, abertura, conhecimento, desmoronamento e queda. O plano é dividido em dois, metade floresta verde (feminino, água) metade torre vermelha (masculino). Mas torre lembra Babel que lembra o orgulho, a vontade de se igualar a deus, que leva à queda e aa perda da língua universal, levando a confusão, dispersão e catástrofe) no meio da floresta (“sempre considerada um símbolo do inconsciente, é o local onde vivem os animais selvagens que correspondem aos nossos instintos), celebram uma boda (indicada pela vestimenta branca, pelo gestual, pelo véu) consistente na entrega de uma caixa (símbolo feminino, representação do inconsciente e do corpo materno, sempre contém um segredo: separa do mundo algo precioso, frágil ou temível. Abrir uma caixa é correr um risco) que é verde (crescimento, sensação; desabrochar da primavera, frescor; renovação, esperança; feminino; é também a cor do veneno e do segredo, e na idade média ligada à loucura e aos demônios) e contém música (o marido traído é fazedor de música). Notar que na cena em que M. é torturada por Mk., estão na margem de um lago numa floresta.
o 42m45s., o espelho.
(Símbolo do saber, do auto-conhecimento e da consciência). A M. “da esquerda” só aparece quase de costas, é para nós uma quase desconhecida. Vemo-la conversando com a M. “da direita”, a que recebe luz da direita. O lado direito indica o lado onde as coisas se tornam conscientes, o lado da consciência, da adaptação. Esquerda significa a esfera das reações inadaptadas, inconscientes, sinistras (Jung, O homem e seus símbolos). Direita: razão, esforço; esquerda: vida contemplativa, sabedoria, silêncio. M. recebe quase sempre luz do lado direito do rosto. B. do lado esquerdo.
p 01h19m., o flagrante.
A melhor cena do filme. Seca, simples, direta, sem subterfúgio, sórdida e humilhante. Causa impacto porque é inusitada e cheia de realismo: sem violência extrema, sem excessos de linguagem ou gesto, os três personagens impotentes e sem ação.
Curiosamente essa cena fica exatamente no meio do filme. É onde começa a descida dos personagens. A partir daí, apenas tristeza e degradação: contar à filha, lidar com o juiz, advogada e assistente social.
q 01h41m., M. lendo o caderno
No ponto em que começa a tortura de M., não é ela quem relata. Está lendo as notas de B., curiosa, parece surpresa e a certa altura olha para ele espantada. E ele parece tenso, apreensivo. Aí começa o terror. É como se a personagem estivesse censurando seu criador pelo destino que deu a ela.
r 01h51m51s., os estupros.
Mk. não aparece, é um fantasma. M. quer ficar de costas. D. está todo de preto, no escuro, virou uma sombra. M. se ajoelha e reza para ser deixada em paz. Entre M. e D. “há um mundo” a separá-los. Mk. Mordeu M. no peito. “Terrorismo íntimo” (Nunes, 2006). Depois, tentam reatar a amizade, mas “mas a alegria tinha desaparecido. Nossa única afinidade era o sofrimento. Sofríamos pelo que havíamos perdido. Tornou-se uma amizade entre condenados”.
s 2h10m50s., as bacantes.
M. representa Agave no coro das Bacantes de Eurípedes. Na peça Agave, no êxtase báquico, mata o próprio filho achando que era um leão. Dioniso enlouquecera as mulheres tebanas por vingança, porque a cidade recusava cultuá-lo. São 12 mulheres em círculo, em volta de 12 lâmpadas.
O grupo de 12 elementos é o mais amplo. Sendo os 2 modelos quantitativos essenciais o três (dinamismo e interioridade) e o quatro (estatismo e exterioridade), sua soma e multiplicidade geram os dois números que os seguem em importância, o sete e o doze. O doze corresponde à figura geométrica do círculo. As ordenações circulares ou cíclicas tendem ao 12 como limite. O dia tem 12 horas, o ano 12 meses, há 12 deuses em muitas mitologias, indicando uma ordem fundada no 12. . há o zodíaco, indicando que os quatro elementos podem aparecer em três modos (níveis ou graus). Os grupos humanos situados na via da tradição simbólica têm o círculo mais elevado e próximo do centro misterioso feito de 12 membros, que representam a iniciação suprema (potestades, virtudes, conhecimentos), e que correspondem à zona zodiacal (filhos de Jacó, tribos de Judá, apóstolos, cavaleiros da Távola) (Cirlot, 1984).
Lâmpada: símbolo da inteligência e do espírito (Cirlot, 1984), da concentração com a sabedoria, porque permite descobrir a sabedoria; a transmissão da chama da lâmpada é a transmissão da doutrina, ou, para o budismo, a transmissão da vida. Representa o homem porque tem corpo de barro, alma vegetativa o princípio de vida, que é o óleo, e um espírito, que é a chama. Oferecer a lâmpada no templo é oferecer a si mesmo (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos, 22a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2008).
Círculo: representa o estágio final na jornada para a perfeição. O movimento circunferencial é uma representação do tempo, do ciclo, do eterno retorno. A esfera representa a totalidade (Cirlot, 1984). Os círculos mágicos costumam funcionar como um temenos, um território pertencente a Deus, um espaço delimitado, um lugar redondo, reservado para um propósito arquetípico e numinoso que é utilizado para concentrar o que está dentro e excluir o que está fora.
Vestem vermelho (fogo e sangue, vida, amor, calor, paixão, fecundidade; guerra, fogo destruidor, sangue derramado, ódio; poder; desejos e paixões irrefreáveis) e amarelo (ouro, luz, sol; eternidade, transfiguração; outono, maturidade; yang; centro do universo; no islã, amarelo-ouro é sabedoria, amarelo-pálido é traição e ilusão; na idade média, inveja, infâmia).
Um círculo de mulheres ao redor de um altar com fogo é uma das configurações mágicas mais recorrentes.
É natural que, depois de tudo, M. vire um mito grego, porque, afinal, acabou de matar um próprio filho para vingar-se do mau tratamento recebido do companheiro.
t 2h15m09s., Margarida.
Muito bege e muito azul. Uma terceira cadeira à mesa, vazia. Comungam, porque há muitos anos já tinham uma comunhão. Duas velas sobre o aparador, quando ela abre a carta-testamento de Mk.. No início, quando M. aceita ir para a cama “inocentemente” com D. ela decide isso enquanto despreocupadamente apaga duas velas com um sopro. Um sopro é tão casual e pouco custoso como soprar uma sílaba, “sim”. Mas apaga uma vida, prenunciando a futura morte de Mk. e do feto gerado por M. e D.: como a lâmpada, a vela é luz individualizada, símbolo de uma vida particular (Cirlot, 1984). Soprar é um ato criador, que infunde ou desperta a vida, aumenta a força de algo ou muda seu rumo (Cirlot, 1984).
Na cena da morte de Mk., uma vela queimada até o final: a vida que se apagou.
u 2h22m50s., a briga final.
Notar como a diretora enfatiza o eixo Z do quadro, para salientar a distância emocional entre os personagens.
4. Aspectos filosóficos.
v Conceito de “infiel” e de fiel.
Bundt (2007) afirma que a noção de fidelidade nasceu em função do sistema patriarcal, no qual a finalidade era garantir aos homens a paternidade dos filhos. Ainda para este autor a moral da fidelidade é dupla, de tal maneira que, quando você está sendo fiel à pessoa com a qual você se relaciona sem que seu desejo esteja direcionado a ela, você estaria sendo infiel a si mesmo, ou então, você pode optar por ser infiel, mas sofrerá as consequências pelo ato. (Infidelidade Conjugal Feminina – D. L. Souza, R.B. Santos. Almeida, Pensando Famílias, 13(2), dez. 2009; (197-214) p. 200). No mesmo sentido: Scabello (2006) discorre sobre uma visão filosófica e relaciona a infidelidade associada ao foro íntimo do parceiro que se engaja pelas sendas da infidelidade. Por este prisma, fidelidade para a autora vincula-se à verdade, logo, fidelidade seria ao amor que se sente pelo próprio ideal almejado e não ao amante. Neste sentido, a fidelidade não corresponderia à exclusividade entre os componentes do relacionamento. (Infidelidade Conjugal Feminina – D. L. Souza, R.B. Santos. Almeida Pensando Famílias, 13(2), dez. 2009; (197-214) p. 200).
Segundo Heilborn (2006) a forma como cada cultura considera adequado o uso dos corpos diz respeito às ideias dominantes na sociedade em cada momento histórico. Para os gregos, por exemplo, a mulher pertencia ao marido, e dela ele exigia exclusividade sexual, enquanto para ele não acontecia o mesmo, mais bem ilustrado nas palavras de Foucault (1984): “Pois se a mulher pertence ao marido, este só pertence a si mesmo” (p. 130). Por isso que, durante todo o período clássico grego e romano, só se considerava infiel o homem que mantivesse relações com mulher casada com outro, porque “a exigência moral de fidelidade constituía, portanto, um respeito aos direitos do marido e não aos da esposa” (Nunes, 2006). “Cerca de 1000 das 1154 sociedades humanas estudadas até hoje - isso inclui a maioria das sociedades primitivas - permitem que os homens possuam mais de uma mulher” (Wright, 1994).
Na época das sociedades mais remotas de que temos notícia, as ligações amorosas socialmente aceitas entre homens e mulheres eram norteadas por princípios econômicos e sociais bastante objetivos. Tais ligações não se fundavam, em absoluto, em necessidades subjetivas de intimidade emocional (Nunes, 2006). Já no período grego clássico, conforme se vê n’O Banquete de Platão, predomina “a idéia central de que o amor deve ser visto como um sentimento único, inconfundível, universal e intrínseco à natureza humana. Além disso, defendiam a ligação entre o impulso natural para o amor e a busca ontológica do objeto ideal perdido, sublinhando-se a alegria extasiante diante da posse deste objeto de amor”, surgindo a partir daí “aquilo que posteriormente ficou conhecido como ‘amor romântico’” (Nunes, 2006). Mas o casamento na Grécia clássica era “um arranjo que se dava, prioritariamente, como uma obrigação social para com o Estado e a coletividade, sendo visto como uma espécie de vínculo irrelevante ou meramente utilitário entre os cônjuges, desprovido de sentido ético e espiritual”, de forma que “levava-se pouco em consideração o sentimento dos noivos”, pois a escolha de emparceiramento era feita pelos pais, porque o casamento “era culturalmente visto como uma etapa obrigatória da vida, não estando diretamente associado à felicidade pessoal” (Nunes, 2006). Assim é que na cerimônia de casamento não se estabeleciam votos de amor e fidelidade entre os noivos. Os votos eram, ao contrário, de fertilidade e prosperidade”, porque o casamento se dava “sob a lógica maior da procriação e não do prazer” (Nunes, 2006). A ideia de casamento por amor só veio com o romantismo do século XIX. Depois, “com a diluição progressiva do ideal de amor eterno e insubstituível, exaltado pelo Romantismo, o que vai sendo construído historicamente é um relacionamento amoroso marcado pela fluidez e abertura, metaforizado por Bauman (2004) através da expressão “amor líquido”. Na liquidez da experiência amorosa contemporânea vão se desfazendo, de forma mais ou menos consistente e relativa, valores românticos, como aqueles que definiam a crença de que somente duas únicas pessoas no mundo são capazes de se amar verdadeiramente e apenas uma única vez na vida, e o amor passa a ser pensado como uma experiência passível de repetição, mudança e até de dissolução ao longo do tempo. (...) Dá-se, assim, a substituição dos relacionamentos apriorísticos do passado - praticamente isentos de projetos e escolhas pessoais, e recheados de sociabilidade comunitária - pelo domínio da opção pessoal, palco privilegiado das relações na contemporaneidade. (...) a duração da relação amorosa, bem como suas regras mais elementares são cotidianamente renegociadas pelo casal. (...) o amor torna-se internamente referido” (Nunes, 2006).
O modelo amoroso romântico, que promete felicidade duradoura, tem também seu ônus de padecimentos, postergações e restrições eróticas que o indivíduo contemporâneo não estaria disposto a sofrer (Lejarraga, 2005). “O inconsciente do homem possui um faro apurado para o espírito do tempo; ele adivinha suas possibilidades e sente no íntimo a insegurança dos fundamentos da moral presente, que não é mais apoiada por uma convicção religiosa viva” (Jung, p.126). Bundt, citando Lipovetsky, avisa que vivemos uma “era pós-moralista (...) surgida pelos anos de 1950/60, é característica de uma ‘sociedade que exalta mais os desejos, o ego, a felicidade, o bem-estar individual, do que o ideal de abnegação’, fruto de uma cultura que ‘não é mais dominada pelos grandes imperativos do dever sacrifical e difícil, mas pela felicidade, pelo sucesso pessoal, pelos direitos do indivíduo, não mais pelos seus deveres” (Bundt, op. cit., p.2). Isso conduz, conforme DeCarli e Martta, a “uma ‘ética individualista flexível’, o que ‘é uma das fontes do desconforto e mal-estar na contemporaneidade, (...) o bom, o justo e o ético passam a ser descritos como instrumentos de utilidade ou interesse dos indivíduos ou de instituições que não estão engajadas com o todo’. O comportamento do indivíduo passa por um raciocínio que justifica suas condutas de acordo com seus objetivos e necessidades em todas as esferas da sua vida” (op. cit.p.2). A psicologia evolutiva mostra como o ambiente social atual é inóspito à monogamia (Wright, 1994), mesmo porque “a experiência amorosa contemporânea acompanha a lógica de consumo de nossa cultura, perseguindo o produto pronto para uso imediato, bem como o prazer passageiro e resultados que não exijam esforços demasiadamente altos” (Nunes, 2006), de forma que é conflituosa por natureza: “sendo internamente referida, precisa sustentar-se em si própria, pautando-se nas condições e habilidades do casal para a construção e manutenção do relacionamento amoroso. Todavia, num contexto em que, de uma forma geral, os indivíduos estão marcados pela perspectiva de uma cultura consumista em que se espera resultados imediatos sem muito esforço e se experimenta a descartabilidade dos produtos e das relações, a troca genuína com o outro e a busca da autenticidade da relação – que, aos olhos de Giddens (2002), representa a única âncora moral que resta ao relacionamento puro na contemporaneidade – pode representar, de fato, um desafio” (Nunes, 2006). E “se o imaginário social não questiona mais a realidade e a importância do desejo sexual na vida humana, por outro lado, o anúncio de um amor que se pretende intenso, romântico, fiel e eterno é, na contemporaneidade, visto com desconfiança e incredulidade por uma cultura em que se operou uma disjunção no campo amoroso, notadamente a do amor e sexualidade e que, descobrindo a liberdade de escolha, o prazer erótico e o divórcio, acabou por abdicar dos grandes ideais (Dufour, 2001), dentre os quais, o de ‘o amor ideal’” (Nunes, 2006). Mas, paradoxalmente, “a ênfase contemporânea na intimidade como espaço privilegiado para a realização individual transforma o amor numa espécie de método para o alcance da felicidade. Diante da perda de referência e da diluição dos ideais modernos, o amor promete ser a última saída para se alcançar a realização e buscar um significado para a vida” (Lázaro, apud Nunes, 2006).
Segundo Lillibridge (1995), embora homens e mulheres tenham casos extraconjugais, estes existem por diferentes razões. Por um lado, as mulheres têm casos, geralmente, para se sentirem queridas, especiais e importantes, para serem apreciadas como pessoas, pois, geralmente, o fator ‘sexo’ não é tão importante para elas. Por outro lado, os homens geralmente têm casos para serem sexualmente aceitos, querem uma mulher que aprecie sua aparência e os considerem sexualmente atraentes e capazes de satisfazê-las. Mas “a mulher procura justificar a infidelidade, pois a mesma acredita que a sua infidelidade é mais “digna”, mais aceitável, por não se tratar apenas de um desejo sexual, mas de um envolvimento emocional” (Souza, Santos & Almeida, p.208). “Um estudo descobriu que mulheres que traem tendem a fazê-lo por volta do período ovulatório, quando a gravidez é mais provável” (Wright, 1994).
“Quando questionados, os homens que traíam afirmaram que amavam tanto suas esposas como suas amantes. Com as mulheres isso é um pouco diferente. Em geral, elas precisam de um motivo para trair, seja este o alcoolismo incurável do marido, as sucessivas tentativas fracassadas de se tornar bem sucedida profissional e financeiramente, a constante violência emocional a que é submetida ou pela simples vingança de uma infidelidade vivenciada. Para a mulher é bem mais fácil cair na armadilha do “amor romântico”, imaginando que aquele caso supriria todas as suas carências e, por isso, apaixonar-se pelo amante é quase inevitável. (...) A maioria das pessoas que comete infidelidade não está realmente querendo romper o casamento: mais da metade dos homens que já cometeram alguma traição dizem que têm um casamento feliz” (Almeida, 2007).
“A infidelidade é o principal elemento disruptor das famílias, a experiência provavelmente mais ojerizada e devastadora em um casamento. “É a justificava mais universalmente aceita para o divórcio” (Almeida, 2007)
“Em quase todos os relatos a decisão pelo fim da relação partiu das mulheres que foram infiéis, isso após a descoberta da infidelidade pelo cônjuge” (Souza, Santos & Almeida, p.211).
“Embora nos seja mais fácil pensar que quem trai não ama seu (sua) parceiro(a), este pensamento está muito longe da realidade. Para algumas pessoas a infidelidade é a resposta possível a uma situação de insatisfação que encontram dentro do relacionamento. (...) o início de uma relação infiel está mais próximo da incapacidade para resolver os problemas do casamento do que da falta de amor. Entretanto, nem todas as pessoas que se engajam em infidelidade são caracterizadas por terem uma paixão avassaladora pela terceira pessoa. A saturação e o desgaste no relacionamento podem abrir, ou não, espaço para a entrada de uma nova pessoa. Em caso afirmativo, a novidade da relação, baseada na sobrevalorização das qualidades e na subvalorização dos defeitos, confere o revigoramento ao que anteriormente parecia perdido, mas que pode, também, dar lugar a sentimentos de culpa fortíssimos” (Almeida, 2007).
w O que é o amor?
i. Intro
“Eros é um grande demónio”, declara a sábia Diotima a Sócrates.
Abordaremos o amor-eros na filosofia de Platão em O
Banquete. Reunidos em torno de Sócrates num banquete; Fedro, Pausânias, Eriximaco, Aristófanes e Agatão discursam e celebram louvores ao deus Eros. E logo depois Sócrates discursa sobre o amor. Aristófanes: Comediante. Tem uma visão trágica do amor. O ser humano é divido por castigo divino. Por isso está sempre a procura de sua outra parte. O amor por sua vez é a única possibilidade para encontrar sua unidade perdida. Somente o amor “recompõe a antiga natureza, ao se esforçar por fundir dois seres num só e curar a natureza humana”. Sócrates: Disseram coisas maravilhosas sobre o amor, porém não quiseram buscar o que é o amor na sua natureza própria. Os outros encaram o amor somente em si, mas o amor em si não existe; o amor é um vínculo que nos une a alguém e nos liga vitalmente a ele. O amor é um “daimon”. Daimon pertence ao mundo dos espíritos, porém está situado no mundo dos homens. É tudo aquilo que é demoníaco, é intermediário entre os deuses e os homens. Isto é, “interpretar e levar aos deuses o que é próprio dos seres humanos e trazer aos homens o que é próprio dos deuses”. Do ponto de vista da filosofia o amor se manifesta na alma como um sentimento de lembrança, de algo que a alma já teve mas perdeu. (lembrar da lenda de Platão, amor filho de pobreza e engenho).
Hobbes, em seu livro Leviatã difunde a idéia de que o homem se funda no desejo, sendo apontado por Costa (1998) como um dos responsáveis por esta ‘revolução’ das mentalidades. Sua filosofia descreve uma natureza humana essencialmente egoísta e violenta, na qual o amor é tão somente uma domesticação de um desejo incessante e incompleto. Mais do que um compartilhar pleno com o outro ou uma rendição a Deus, este sentimento apontaria para a interioridade humana, plena de egoísmo. A individualidade passou então, nesta perspectiva, a ser o cerne de um amor nascido dos desejos do sujeito e destinado a satisfazê-lo, em que a busca deixa de ser ‘pelo mais sublime’ e passa a ser ‘pelo objeto de desejo’ que, por sua vez, jamais é alcançado (Nunes, 2006).
Nietzche sintetiza o seu pensamento do amor como egoísmo mostrando que: “deste amor (refere-se ao amor sexual), se tenha deduzido o conceito do amor como o contrário do egoísmo, quando é precisamente esse amor a mais espontânea expressão do egoísmo”. "O amor é o ódio mortal dos sexos", porque "o homem quer o poder incondicional sobre a alma e o corpo da mulher". Além disso, achava que "a vontade de reinar é a marca dos homens mais sensuais". A seu ver, as mulheres desejam apenas "pertencer" a um homem viril. "O que uma mulher entende por amor é uma dádiva total do corpo e da alma, sem reservas". O amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são. Em última análise, amam-se os nossos desejos, e não o objecto desses desejos.
Shopenhauer (1788 – 1860) "o sentimento amoroso radica exclusivamente no impulso sexual". O amor é apenas um nome inventado que damos a um impulso de reprodução da espécie. "(O amante) imagina que se esforça e se sacrifica por seu próprio prazer, mas tudo que faz, na verdade, é guiado pela reprodução da espécie". Para ele, "(o amor) é digno da profunda seriedade com que todos o buscam; ele decide nada mesmo do que o substrato da nova geração". Em sua obra máxima, "O Mundo com Vontade e Representação", Shopenhauer explica por que o amor é um tema eterno: "(O amor" é o objetivo último de quase toda a preocupação humana).
Kant (1724 – 1804) não achava que os amantes fossem sempre morais. Ele distingue o amor "prático" do amor "patológico". O amor prático seria uma disposição racional de agir de modo benévolo com quem precisa, independentemente de qualquer relação que possamos ter com eles. Amor patológico, por sua vez, é uma inclinação para ajudar a quem amamos, por razões bastante irracionais, porque as desejamos sexualmente. Atos de amor patológico provêm de paixões volúveis e não de uma apreciação racional do que seja certo fazer. É por isso que eles carecem, segundo Kant, da dignidade ética que possuem os atos de amor.
ii. Amor ágape
Ou amor-caritas, amor altruísta e não sexual, “um amor afastado da sensualidade e dirigido a Deus”, “obra do espírito e signo do amor universal dirigido a Deus, experiência (...) distante e até oposta aos impulsos da ‘carne’” (Nunes, 2006). “A abstinência sexual era o grande ideal de moralidade, e o casamento uma hesitante concessão do cristianismo ao comportamento sexual que, mesmo no interior deste, devia restringir-se ao mínimo necessário para a perpetuação da humanidade” (Nunes, 2006).
iii. Amor filia
iv. Amor-eros
“O benefício genético de se possuir dois pais que se devotam ao filho parece ser uma razão central pela a qual homens e mulheres se apaixonam” (Wright, 1994).
A psicanálise nos ensina que o amor não elimina nem a falta, porque ela faz parte da constituição do aparelho psíquico (subjetividade), nem o desconforto do homem no mundo. Freud, em seu texto Mal-estar na civilização (1930), indica as fontes principais desse desconforto: as exigências imperativas do social, a degradação do corpo, a morte e os conflitos inerentes aos laços sociais (amor, relações familiares, de trabalho e de amizade). Sem dúvida, o amor, a religião e os ideais de revolução social para transformar o mundo fazem parte das grandes ilusões humanas: fraternidade, eternidade, felicidade e liberdade. Conclui-se, então, que o fracasso dessas ilusões não faz com que o homem abdique de buscar toda a verdade ou de cometer atrocidades contra seu semelhante em Nome-do-Amor (F004t).
“Freud (1922/1995) acreditava que a escolha do outro se fundamentava na opção por alguém que se parecia conosco, ou ainda, como gostaríamos de ser, ou até mesmo, de alguém que representou um papel importante em nossas vidas, como a figura paterna ou materna. Almeida (2003) afirma que este raciocínio pode ser considerado perigoso na medida em que, caso seja verdadeiro, são impostos ditames de conduta e padrões de comportamentos reparatórios que não se aplicam ao relacionamento atual. Conseqüentemente, ambos os parceiros ficarão frustrados, pois a expectativa de que o outro venha a suprir as experiências afetivas que cada um viveu ou fantasiou ter vivido, será sempre maior do que o(a) parceiro(a) pode realmente realizar” (Almeida et. al., 2008).
“A idealização da ‘mulher perfeita’ pelos homens e do ‘homem que as apóie e as ajude’, pelas mulheres (que geralmente costumam confundir casamento com felicidade), faz com que as pessoas reivindiquem muito umas das outra, o que gera frustrações, e abre caminho para a infidelidade” (Almeida, 2007).
“Esta concepção de amor, vinculada ao narcisismo - entranhamento do sujeito no próprio eu, tem como suporte a idéia, inserida numa tradição romântica, de um sujeito sempre em busca do paraíso perdido, em busca da plenitude e reencantamento do mundo. Um sujeito em confronto com a sua solidão e dependência, inexoráveis, que o lançam em situações de sofrimento e desamparo” (Silva, 2002).
O desejo se apresenta sempre com as seguintes características: indestrutibilidade e invariância. É nesse sentido que Lacan afirma que o desejo é sempre o mesmo, que está sempre se deslocando de um objeto para outro. Em relação ao desejo nunca é isto, é sempre outra coisa, mais outra, ainda outra e assim sucessivamente... Aqui entra em cena a invenção do amor com a finalidade de suprir a falta. Justamente por isso, há amores que colocam em cena essa falta e amores que a denegam. (F004t)
As Ciências Biológicas tem modelos de amor que o descrevem como um instinto de mamíferos, tal como fome ou sede. Na psicologia vê-se o amor como mais de um fenômeno: social e cultural. Há provavelmente elementos de verdade em ambas as posições - o amor é certamente influenciada por hormônio s (tais como oxitocina), neurotransmissores (como NGF), e Feromônio s, bem como a forma de pensar das pessoas o que faz com que estas se comportem com relação ao amor de maneira influenciada por suas concepções do que é o amor.
v. Amor-paixão
Não é por acaso que os poetas tanto falaram do olhar como sendo a causa de um desejo ardente, cujas metáforas se constroem em torno da figura de uma chama que arde, queima, abrasa, ulcera, atormenta, enlouquece... (F004t).
Amor, paixão, e loucura: estudos têm demonstrado que o escaneamento dos cérebros dos indivíduos apaixonados exibe uma semelhança com as pessoas portadoras de uma doença mental. O amor cria uma atividade na mesma área do cérebro que a fome, a sede, e drogas pesadas, criando atividade Polimerase. Novos amores, portanto, poderiam ser mais emocionais do que físicos.
A paixão (do verbo latino patior, que significa sofrer ou suportar uma situação difícil) é uma emoção de ampliação quase patológica. O acometido de paixão perde sua individualidade em função do fascínio que o outro exerce sobre ele. É tipicamente um sentimento doloroso e patológico, porque, via de regra, o indivíduo perde parcialmente a sua individualidade, a sua identidade e o seu poder de raciocínio.
A paixão é uma idealização mítica do outro. “Uma vivência de paixão (...) se mostra com uma face ruidosa, na qual a desmedida do afeto se expressa por um extrapolamento libidinal, uma anulação de si pela via do enaltecimento do outro enquanto objeto da paixão” (Silva, 2002).
Bases biológicas: segundo recentes estudos de Donatella Marazziti (2007, Livro Natureza do Amor), a paixão se caracteriza, do ponto de vista biológico, por uma liberação contínua de alguns neurotransmissores como Dopamina e Noradrenalina. A Amígdala (cerebelosa) tem um papel central neste processo, pois é desta região que emanam alguns dos sentimentos mais instintivos. Esta tempestade bioquímica está relacionada com um índice mais baixo de Serotonina do que em uma população normal, sendo semelhante ao nível deste neurotramissor nos portadores de Transtorno Obsessivo-Compulsivo, o que explicaria os pensamentos obsessivos da pessoa a qual se está apaixonado. Estes níveis bioquímicos explicam por que a pessoa tende a perder a razão, enquanto em estado de apaixonamento. Este mecanismo é semelhante ao de algumas drogas, como a cocaína, sendo necessário para a perpetuação da espécie, pela atração. Além destes neurotransmissores citados, há a participação de outras substâncias, tais como Oxitocina e Vasopressina, que estão relacionadas com o amor e as sensações de segurança e calma derivadas deste sentimento.
Conforme Silva (2002), o amor-paixão é “busca de uma plenitude perdida, do reencantamento do mundo” e é regido pelas instâncias primárias, narcísicas: “No texto sobre o Narcisismo, de 1914, no qual Freud faz uma articulação entre a paixão amorosa e o conceito de narcisismo, ele formula o apaixonamento como uma revivência das relações primárias do sujeito infantil, em um encontro que busca recuperar ou reviver as impressões outrora experienciadas (...) o reencontro com os objetos das primitivas relações do sujeito”, ou seja, “expressão do aprisionamento ao obscuro e impossível dos nossos desejos infantis”, “que mantêm o sujeito num campo mortífero, fechado nas artimanhas do gozo incestuoso” (Silva, 2002). O narcisismo tematiza a instabilidade do objeto amoroso, dando-o por miragem ou reflexo. Citando Ovídio, nas Metamorfoses: “O objeto de teu amor não existe: esta sombra que vês é o reflexo da tua imagem(...) Ela não é nada em si, é de ti que ela surgiu, é em ti que ela persiste, tua partida a haveria de dissipar, se tivesses a coragem de partir” (Silva, 2002). Por isso encontro amoroso é um engodo, “fadado ao fracasso”,porque “as escolhas de objeto, na fase adulta, visam reconstituir e reencontrar os ‘amores’ vividos nas relações da primeira infância”. Prossegue lembrando que paixão o amor são afetos regidos por éticas diferentes: “Na paixão, a predominância de uma ética totalitária, que podem moldar relações de domínio e da servidão, anulação do outro enquanto alteridade. O fim da paixão, que tem como suporte histórico filosófico o romantismo, é denegar toda e qualquer diferença, na busca de se fazer uno, de nunca entrar em contato com a dor de se saber só” (Silva, 2002).
x O que é ciúme?
Segundo Buss (2000),“Culturas em paraísos tropicais inteiramente livres de ciúme só existem nas mentes românticas de antropólogos otimistas e, na realidade, jamais foram encontradas” (p. 45).
Há dados de que cerca de 20% de homicídios são “movidos” pelo ciúme (Leite, 2000). Para o homem, o ciúme é útil uma vez que o protege contra os riscos de perder o tempo que investiu na corte de uma mulher, de dedicar-se aos filhos que não são seus e de danificar sua reputação. Para as mulheres, a utilidade do ciúme estaria relacionada ao fato de afastar a possibilidade de uma rival retirar a segurança emocional para com ela e filhos. O ciúme ajudou a restringir a prevaricação nas mulheres e o abandono por parte dos homens” (Costa, 2005). Considerando o caráter decisivo da necessidade de o vínculo afetivo entre o par para garantir o investimento parental dos machos, diz Wright (1994) que “na verdade deveriam haver dois tipos de ciúme, um para machos e outro para fêmeas. O ciúme do homem deveria enfocar a infidelidade feminina, desde que a traição é a sua maior ameaça. A mulher, embora não aplauda a infidelidade masculina, estaria mais preocupada com a infidelidade emocional - o cometimento magnético a outra mulher que resultaria em um deslocamento maior de recursos”.
Em pesquisa realizada com 1279 homens e mulheres das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, no período entre 1998 a 2003, Goldenberg (2004) aponta que, ao indagar aos sujeitos a respeito dos problemas que vivenciam em seus relacionamentos amorosos, o principal problema citado é o ciúme (Nunes, 2006).
Embora homens e mulheres apresentem ciúme, os motivos que produzem tal emoção são distintos - o homem é mais afetado pela ameaça de um envolvimento sexual, enquanto a mulher pela ameaça de um envolvimento emocional (Buss,2000). Dados demonstraram que indivíduos que relatam ter menos ciúme são discriminados ou punidos (Costa, 2005). O privado, enquanto fenômeno psicológico, tem sua existência determinada e limitada pelas práticas culturais; Logo, o ciúme só existe como tal em função de uma cultura que reforça esse padrão (Costa, 2005).
Numa tese instigante, expressa no livro The Dangerous Passion (A Paixão Perigosa), que causa furor nos Estados Unidos, o psicólogo David Buss sustenta que o sentimento não é apenas natural e inevitável, como está impresso no nosso código genético. A tese desse professor da Universidade do Texas é que os ancestrais do homem temiam que suas fêmeas tivessem filhotes com outros machos, e aí estaria a origem biológica do ciúme: cuidar de crias alheias pensando que se está protegendo e alimentando os próprios filhos. Esse ciúme primordial, cuja utilidade prática se esgotou há muito
No terreno do ciúme, a pesquisa de Buss perguntou a 10.041 homens e mulheres de 37 países o que os incomodava mais: imaginar o parceiro tendo relações sexuais ou se envolvendo emocionalmente com outra pessoa. A maioria esmagadora das mulheres optou pela segunda resposta – não suporta a idéia de o marido se apaixonar por outra. Já os homens tremem muito mais diante da traição puramente, por assim dizer, sexual. A
O ciúme masculino tem um caráter de nítida competição e extrema intolerância. Mais que simplesmente perder a mulher, o homem teme perder status, a posse, a honra.
Quando pensamos sob o efeito de afetos passivos nossos pensamentos serão obscuros e confusos. Contudo, isso não se deve aos afetos em geral, pois buscar pensar sem eles, ou de uma forma dissociada, é buscar pensar de forma separada da realidade, o que é efetivamente impossível, consistindo em um erro da mente e gerando idéias falsas sobre as coisas. “A moral em geral baseia-se nesse erro, que Nietzsche chamou de uma tentativa de ‘corrigir’ a existência. A idéia é que não adianta maldizer a natureza humana, afetiva e passional, mas compreendê-la para tirar melhor proveito dela”, explica Martins. No caso do ciúme, a relação com a razão só pode se dar tardiamente, após sua percepção e sua vivência.
5. Frases anotadas.
“Suponho que a avó do diabo entenda muito da verdadeira psicologia da mulher, eu, no entanto, até agora, não” (Jung, 1991, p.118).
“O amor é a compensação da morte” (A. Schopenhauer).
Fernando Pessoa, no Poema II de O guardador de rebanhos: “Porque quem ama nunca sabe o que ama/ Nem sabe por que ama, nem o que é amar...”
Camões: “Transforma-se o amador na cousa amada,/por virtude do muito imaginar;/ não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mi tenho a parte desejada.”
Camões: “Mas como causar pode seu favor/ Nos corações humanos amizade,/ Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”
“o amor mata o que éramos, a fim de que surja o que não éramos; o amor é para nós como a morte”.(Jung, 1998-B, P. 243).
Diz o poeta Manoel de Oliveira: “O olho vê, a Memória revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.”
Os ciumentos sempre olham para tudo com óculos de aumento, os quais engrandecem as coisas pequenas, agigantam os anões, e fazem com que as suspeitas pareçam verdades (Cervantes)
Sartre: paixão, bela torrente devastadora
Toda literatura es autobiográfica (Jorge Luis Borges).
“Em Orã, como noutras partes, à míngua de tempo e reflexão, somos obrigados a amar sem saber” (Camus, A peste, p.62).
6. Referências.
Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (2008). Dicionário de Símbolos, 22a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio.
Cirlot, J. E. (1984). Dicionário de Símbolos. São Paulo: ed. Moraes.
Buss, M.D. (2000). A paixão perigosa. Rio de Janeiro: Objetiva.
Bundt, R. (2007). A moral da infidelidade. Sessões do imaginário, 1(18), 51-56. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/2588/2009. Acessado em 8/4/2013.
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8. Brainstorming
Band-aid no mínimo da mão esquerda?
grito mudo
mordida no peito
estupro na terça, e suicídio no sábado
espelho, lago espelhado, narciso.
Soprar duas velas
ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
INI | ROL | IGC | DSÍ | FDL | NAR | RAO | IRE | GLO | MIT | MET | PHI | PSI | ART | HIS | ???